Diáspora é contar a sua história a partir da história do outro
“Que eu transmute a dor em força pr’eu voltar pra casa”
Em Pedras, Flechas, Lanças, Espadas e Espelhos, Thiago Elniño fala também sobre BANZO. Banzo é o sentimento nostálgico, é a profundeza de pensamentos que permeiam a existência negra, é a saudade, a falta, a ausência de um lar. Esse é um sentimento que me acomete ao observar o mar, ao ouvir um samba antigo e até mesmo vendo fotos antigas de família (com adesivos e tudo mais). Como diria a curadora de conhecimento e podcaster, Ana Be, “saudade a gente tem e com saudade a gente se cura”, banzo também é cura.
Banzo é um conceito filosófico, definido pelo compositor, cantor, escritor e estudioso das culturas africanas, Nei Lopes, como “nostalgia mortal que acometia negros africanos escravizados no Brasil”. Por ser um conceito existencial ao qual não tenho profundo conhecimento, conto com a minha perspectiva diante de minhas experiências, entendimentos de minhas leituras e, é claro, da música. A música, para mim, é a melhor tradutora de sentimentos que não consigo explicar.
Para o povo Bantu, a vida é constituída por quem veio antes de nós, por quem está no presente e por quem virá; não há, neste sentido, uma existência que se livre da responsabilidade de respeitar nossa ancestralidade, os caminhos por onde o povo preto passou, passa e ainda passará. Estamos falando agora sobre legado. Atravessando o Atlântico, chegamos ao Brasil e, por aqui, Jorge Aragão escreveu: “E quando pisar no terreiro, procure primeiro saber quem eu sou. Respeite quem pôde chegar onde a gente chegou”. A musicalidade faz parte do nosso legado, é o que nossos antepassados tiveram e o que nossos descendentes terão.
Em junho, tive o prazer de conhecer o Parque Estadual do Jalapão, um paraíso no Tocantins, é tudo aquilo que você encontra na internet, o azul e a magia dos fervedouros não é exagero e nem edição. Entretanto, de todas as coisas lindas que aconteceram nessa viagem, o que mais mexeu comigo foi ter visitado a Comunidade Quilombola Mumbuca. É, literalmente, uma grande família pelo grau de parentesco que tem uns com os outros. Formada por 165 moradores cafuzos, “mumbuca” é uma expressão indígena para “abelha azul”, presente em sua fauna.
Vivem do que cultivam, o que inclui o Capim Dourado, natural da região. Tive o privilégio de conversar com Noêmia Ribeiro da Silva, conhecida como a Doutora do Cerrado, a quarta geração de artesãs da comunidade, filha de dona Miúda, matriarca do povoado. A oralidade é nosso legado, toda história que me contou não foi filmada e, mesmo que fosse, jamais poderia transmitir o real significado daquele momento.
Das coisas que aprendi esse ano, a mais valiosa até aqui foi saber observar o valor da manutenção de nossos valores quanto povo preto. É preciso ouvir (neste caso, ler) com atenção, os mais velhos já disseram, “A gente nunca descobre nada, a gente volta a tudo aquilo que nós somos. E esquecemos que somos”, Mateus Aleluia, compositor, cantor e instrumentista. Em conversa com alguns amigos, cheguei a conclusão de que se não fosse o mistério e devoção dos mais antigos com o Candomblé, por exemplo, não estaríamos aqui. O caminho está dado, basta saber seguir.
Por fim, como otimista convicta que sou, tal qual Morena Mariah, acredito que o pior já passou. Nada pode ser pior do que o processo de sequestro e escravização, não compro a ideia eurocêntrica e apocalíptica, nós já passamos por nosso apocalipse quanto povo preto e vejo a nossa retomada quanto a maior promessa de futuro. Transmutaremos a dor em força para voltar pra casa, nosso legado é valioso e nossas conexões assustam aqueles que estão no poder; não à toa o governo militar ameaçou e afastou Toni Tornado do Brasil, eles não querem que a gente saiba que preto é lindo, autoestima e conhecimento são ameaçadores.