Diáspora é contar a sua história a partir da história do outro

Leila Evelyn
4 min readNov 7, 2019

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“Que eu transmute a dor em força pr’eu voltar pra casa”

Eu, em Feira de Santana, BA, na casa e Terreiro de minha tia-avó (1996)

Em Pedras, Flechas, Lanças, Espadas e Espelhos, Thiago Elniño fala também sobre BANZO. Banzo é o sentimento nostálgico, é a profundeza de pensamentos que permeiam a existência negra, é a saudade, a falta, a ausência de um lar. Esse é um sentimento que me acomete ao observar o mar, ao ouvir um samba antigo e até mesmo vendo fotos antigas de família (com adesivos e tudo mais). Como diria a curadora de conhecimento e podcaster, Ana Be, “saudade a gente tem e com saudade a gente se cura”, banzo também é cura.

Banzo é um conceito filosófico, definido pelo compositor, cantor, escritor e estudioso das culturas africanas, Nei Lopes, como “nostalgia mortal que acometia negros africanos escravizados no Brasil”. Por ser um conceito existencial ao qual não tenho profundo conhecimento, conto com a minha perspectiva diante de minhas experiências, entendimentos de minhas leituras e, é claro, da música. A música, para mim, é a melhor tradutora de sentimentos que não consigo explicar.

Para o povo Bantu, a vida é constituída por quem veio antes de nós, por quem está no presente e por quem virá; não há, neste sentido, uma existência que se livre da responsabilidade de respeitar nossa ancestralidade, os caminhos por onde o povo preto passou, passa e ainda passará. Estamos falando agora sobre legado. Atravessando o Atlântico, chegamos ao Brasil e, por aqui, Jorge Aragão escreveu: “E quando pisar no terreiro, procure primeiro saber quem eu sou. Respeite quem pôde chegar onde a gente chegou”. A musicalidade faz parte do nosso legado, é o que nossos antepassados tiveram e o que nossos descendentes terão.

Em junho, tive o prazer de conhecer o Parque Estadual do Jalapão, um paraíso no Tocantins, é tudo aquilo que você encontra na internet, o azul e a magia dos fervedouros não é exagero e nem edição. Entretanto, de todas as coisas lindas que aconteceram nessa viagem, o que mais mexeu comigo foi ter visitado a Comunidade Quilombola Mumbuca. É, literalmente, uma grande família pelo grau de parentesco que tem uns com os outros. Formada por 165 moradores cafuzos, “mumbuca” é uma expressão indígena para “abelha azul”, presente em sua fauna.

Vivem do que cultivam, o que inclui o Capim Dourado, natural da região. Tive o privilégio de conversar com Noêmia Ribeiro da Silva, conhecida como a Doutora do Cerrado, a quarta geração de artesãs da comunidade, filha de dona Miúda, matriarca do povoado. A oralidade é nosso legado, toda história que me contou não foi filmada e, mesmo que fosse, jamais poderia transmitir o real significado daquele momento.

Noêmia Ribeiro da Silva, também conhecida como Doemir Ribeiro ou Doutora do Cerrado. Foto disponibilizada por Ilana Ribeiro Cardoso, parte da Comunidade Mumbuca e responsável pelo Turismo da região.

Das coisas que aprendi esse ano, a mais valiosa até aqui foi saber observar o valor da manutenção de nossos valores quanto povo preto. É preciso ouvir (neste caso, ler) com atenção, os mais velhos já disseram, “A gente nunca descobre nada, a gente volta a tudo aquilo que nós somos. E esquecemos que somos”, Mateus Aleluia, compositor, cantor e instrumentista. Em conversa com alguns amigos, cheguei a conclusão de que se não fosse o mistério e devoção dos mais antigos com o Candomblé, por exemplo, não estaríamos aqui. O caminho está dado, basta saber seguir.

Minha mãe, Beniria Maria, exibe com orgulho sua foto quando mais nova. Acompanhada de seu pai, Benedito Evangelista, veste branco em uma festa para Obaluaê.

Por fim, como otimista convicta que sou, tal qual Morena Mariah, acredito que o pior já passou. Nada pode ser pior do que o processo de sequestro e escravização, não compro a ideia eurocêntrica e apocalíptica, nós já passamos por nosso apocalipse quanto povo preto e vejo a nossa retomada quanto a maior promessa de futuro. Transmutaremos a dor em força para voltar pra casa, nosso legado é valioso e nossas conexões assustam aqueles que estão no poder; não à toa o governo militar ameaçou e afastou Toni Tornado do Brasil, eles não querem que a gente saiba que preto é lindo, autoestima e conhecimento são ameaçadores.

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Leila Evelyn

Me disseram que essa era a mídia social do textão, por esse e outros motivos, aqui estou. — 26 anos, Relações Públicas, produtora e várias fita.