Empreendedores culturais são o futuro que não demora

Texto originalmente publicado na Folha de S. Paulo, (jul.2023)

Leila Evelyn
3 min readJan 16, 2024

Há algo de bonito e triste que sempre me chama atenção na letra de Fórmula Mágica da Paz, dos Racionais MC’s. Na letra, dizem que o espaço onde viviam nos anos 90 era como um campo minado, cheio de problemáticas estruturais. Mesmo assim, eles não desistiram de encontrar uma saída, uma solução. De lá pra cá, passaram-se quase 30 anos e ainda identificamos pontos em comum com aquela realidade.

O país que foi marcado pela colonização e conflitos diversos, é palco de características únicas que atravessam e reverberam até os dias de hoje tanto nas vivências, como na expressão artística, da população preta e pobre. Em 2019, enquanto prestava mentorias com OPreta, para empreendedoras negras e indígenas a convite da Feira Preta, aprendi a usar uma expressão que define bem essa gana por sobrevivência, esse jeitinho brasileiro de não desistir nunca: a sevirologia, arte de se virar e achar uma solução para tudo.

Leila Evelyn dos Santos é nascida e criada na Cidade Tiradentes, co-CEO da consultoria de comunicação e marketing digital OPreta, relações públicas, especialista em comunicação social, parte do time de reputação na AmbevTech, empreendedora e pesquisadora de arte e cultura — Divulgação

O empreendedor cultural, assim como o empreendedor social, não busca somente resultados financeiros, mas também resultados com missão social-cultural. Esse empreendedor observa oportunidades, ou seja, onde o Estado atua de maneira desigual e insuficiente, lá está esse empreendedor investindo recursos financeiros ou não para realização de atividades que fomentem o bem-viver, a educação e formação de cidadãos.

De acordo com pesquisa da Unesco, antes da pandemia, segmentos culturais e criativos tinham previsão de gerar R$43,7 bilhões para o Produto Interno Bruto (PIB) até 2021. Entretanto, conforme indicaram os resultados da Pesquisa da FGV, os setores de economia criativa, com atividades do setor cultural, estão entre os mais prejudicados pela recente pandemia da Covid-19.

Importante destacar que essa é uma consequência de um longo processo de desvalorização cultural que se dá há séculos no Brasil, especialmente fazendo o recorte de raça, que indica classe e gênero.

A necessidade sempre ditou a importância de empreender esforços e coordenar projetos para implementar mudanças no que estava posto e parecia inadmissível. Acredito que a verdadeira cara do empreendedor brasileiro, geralmente associado ao estereótipo de um homem branco cis de terno e gravata, na verdade tem mais a ver com a de vendedores ambulantes, entregadores e motoristas de aplicativo, que no fim do expediente, mesmo esgotados, decidem ‘tirar um lazer’ em espaços democráticos e de fácil acesso, geralmente opções limitadas em periferias.

Raça tensiona e forja a sociedade, a música é mais um instrumento de escoamento de questões vivenciadas, frustrações e elaboração de sentimentos diversos. Paul Gilroy, sociólogo inglês, diz que a cultura musical fornece dose de coragem para seguir vivendo no presente. Não à toa, conseguimos identificar com facilidade em determinados estilos musicais advindos das periferias, uma visão crítica como resposta ao tempo e ao contexto em que estão inseridos.

Felizmente, não é difícil afirmar que há uma crescente positiva em relação às expressões artísticas empreendedoras e autônomas, em diferentes formatos, não só musicais. Vemos celulares simples como trampolins para pessoas saírem do anonimato e protagonizarem suas narrativas cotidianas, a exemplo disso destaco a Fernanda Souza (@correrua) e Jef Delgado (@jefdelgado), diretores criativos e fotógrafos que alcançaram grandes marcas e símbolos relevantes para a cultura nacional e internacional.

Imagem de reprodução: campanha Lacoste Global 2023, por Fernanda Souza. Ver aqui.
Imagem de reprodução: campanha Umbro 2023, por Jef Delgado. Ver aqui.

É possível que a associação não seja automática, mas acredito que pertencemos a uma geração que responde ao tempo. Refletimos o passado e desfrutamos, no presente, de direitos conquistados. Peço licença aos meus mais velhos para citar a ideologia de Sankofa, ao retornar ao passado ressignificamos o presente e construímos o futuro. E em minha opinião, no futuro, empreendedores culturais serão inevitáveis e contundentes para a sustentação da economia do país, talvez do mundo.

  • O presente artigo contou com a edição da jornalista Giulia M. Ebohon
  • Você também pode conferir a matéria publicado na Folha de S. Paulo clicando aqui.

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Leila Evelyn

Me disseram que essa era a mídia social do textão, por esse e outros motivos, aqui estou. — 26 anos, Relações Públicas, produtora e várias fita.