MARIA AUXILIADORA: O PESSOAL É TAMBÉM POLÍTICA DE COMBATE

Com doçura no olhar e firmeza em seus traços, a pintora trouxe à tona provocações urgentes sobre sua existência enquanto mulher negra

Leila Evelyn
8 min readNov 6, 2022

Me meti numa aventura muito louca chamada “pensar criticamente o Brasil”. Voltei pra academia, estou realizando um desejo antigo e cursando Cultura, educação e relações étnico-raciais, no CELACC-USP. Com as devidas adaptações de linguagem, decidi que compartilharei por aqui, de maneira pública, todas as conclusões dessa jornada, a fins de registro e partilha. Trabalho com a tecnologia da palavra, sou uma profissional em exercício afrofuturista. Não é pretensioso dizer que há uma retomada de poder prevista em cada linha dessa narrativa protagonizada por mim, enquanto uma mulher preta.

Como desafio para conclusão da disciplina de Arte Africana e Afro-Brasileira, escolhi discutir a arte-vida de Maria Auxiliadora da Silva. É curioso como, para mim, é como se a mesma fosse uma velha conhecida, em 2018 escrevi de maneira simples e extremamente pessoal sobre essa relação profunda que tenho com sua obra. Revisitar essa memória foi como um despertar oportuno, não poderia abrir os caminhos de maneira mais feliz. Tenho como certo: Exú atirou essa pedra ontem, acertando o pássaro hoje.

Você tá sentindo o que tô sentindo, cara pessoa leitora? Fui inundada, sinto empolgação correndo pelas veias. Estou pronta para ser acompanhada nessa trilha, então pega uma aguinha ai e se acomoda. Agora, oficialmente, vamos começar!

Maria Auxiliadora, o cometa brilhante

Pintora Brasileira Maria Auxiliadora da Silva (Foto: Reprodução Folha de S. Paulo)

Há um artigo no Geledés que descreve Maria Auxiliadora da Silva como um cometa, acredito que não exista uma definição tão precisa visto que, como um fenômeno raro e passageiro, a artista plástica pintou apenas dos anos 1967 a 1974, mas demarcou seu espaço enquanto figura relevante, sendo intitulada como artista marginal, primitivista, naif, por produzir de maneira autodidata, sem formação culta no campo das artes.

O “primitivismo artístico” é uma relação de alteridade. Com esta afirmação, gostaria de considerar-lo como um campo de possibilidades aberto ao artista das primeiras décadas do século XX, capaz de elevar diante dele personagens estranhos, exóticos e instigantes, em suma, o outro. (ADRIOLO, 2006, p. 19)

Ao longo desse curto período, retratou o que era comum a sua realidade, além de autorretratos, em obras carregadas de cores percebemos festas, ritos e danças populares, por exemplo. Com uma clara percepção, destacou detalhes reais e imagéticos em tudo que se propôs. Dessa forma, negou o óbvio imposto, não assimilou os valores impostos pela ditadura, e estrutura social em si, em suas telas, pelo contrário. Fez uma revolução silenciosa ao assimilar valores culturais próprios a sua negridão, como colocado pelo teórico FANON, Frantz: “quanto mais assimilar os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará de sua selva. Quanto mais ele rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será.”. (2008, p. 34)

Colheita de flores, 1972

Embora eu não tenha encontrado em meus registros, o primeiro impacto ao perceber a mostra do MASP naquela época veio sobre uma reflexão importante, provocada pela frase “O pessoal é político”, traduzido do artigo “The Personal Is Political — The Women’s Liberation Movement classic with a new explanatory introduction”, de Carol Hanisch (1969).

Dentro do contexto dos anos 60 e 70, tudo aquilo que cercava o universo retratado em suas obras era muito diferente da superficialidade comumente atribuída àquelas mulheres negras que ousavam falar sobre si e seu entorno com autoridade e até, me atrevo a dizer, com uma certa doçura no olhar.

O retrato nunca foi favorável as pessoas negras no país

Nos anos 60 e 70, passávamos por um período ditatorial, a cena cultural brasileira sofre o impacto de um regime de exceção. Com duras censuras à arte, à imprensa, e às manifestações públicas, o espaço para expressão foi limitado as considerações conservadoras do que era o ideal de ser apresentado enquanto ideal de uma cultura nacional.

Contrariando as tendências esperançosas pós-guerra e de avanços industriais, os anos 60 já se iniciam com golpe militar ao então governo de João Goulart. Os anos 70 foram marcados pela eliminação das oposições. Segundo GUERRA:

A supressão dos canais da sociedade civil (Assembleias Legislativas, Congresso, etc.), a censura aos meios de comunicação (jornal, rádio, TV, cinema, teatro, livros, etc.), são apenas a parte visível de um processo de modernização autoritária, que visava integrar o país na produção capitalista internacionalizada. (2021, p. 5)

A ditadura foi racista. Dentre as violências e opressões, movimentos culturais sociais negros como o Teatro Experimental do Negro (1944–1961), fundado por Abdias do Nascimento, foram suprimidos graças as perseguições da época. Enquanto lá fora, de maneira ampla e internacional, jovens ostentavam orgulhosamente o movimento por direitos civis na América do Norte, também sob perseguições violentas, aqui no Brasil iniciativas artísticas eram igualmente colocadas à fogo.

O regime militar vigiou as atividades do Movimento Negro Unificado — MNU como um todo, de maneira bastante exaustiva. Para se ter uma dimensão, a intelectual e política Lélia Gonzales foi fichada por uma das políticas centrais da organização ser a reinvindicação do passado de luta e revolucionária do negro, ou seja, a rememorações de um povo negro que não foi passivo ao movimento de escravização, mas sim contundente na construção de quilombos e demais movimentos organizados de resistência.

Nesse contexto caótico, parece difícil conseguir ver luz no fim do túnel

E, longe de um olhar romântico, apesar dos percalços, foi com o uso de cores que Maria Auxiliadora da Silva representou a vida dura. Fruto de uma família pobre com dezoito filhos, morou na maior parte da vida nas margens suburbanas da Zona Norte de São Paulo. Trabalhou desde os doze anos, passou por diversos empregos, atuou como empregada doméstica e depois como bordadeira em uma fábrica em São Paulo. Aos 32 anos (1968) tem oportunidade de se lançar como artista, graças ao grupo de Solano Trindade em Embu das Artes — SP. Se consagra como artista mesmo sem ter tido qualquer tipo de formação acadêmica, nesse sentido sendo classificada como ignorante.

Ao fazer uma busca no dicionário, encontra-se como definição para ignorância a “condição da pessoa que não tem conhecimento da existência ou da funcionalidade de algo”. Com conotações forçosamente pejorativas, a noção de ignorância emprega a pessoas com baixa escolaridade e/ou acessos limitados o lugar de carência, falta de experiências, insuficiência geral. É uma visão problemática, restritiva, que relativiza conhecimentos múltiplos de maneira reativa e indireta. A partir da privação, alguns indivíduos desenvolvem metodologias criativas para sobrevivência e solução de imprevistos.

Sem conhecer as regras e os processos estéticos e técnicos habituais, nem os princípios ligados à representação, à composição, à perspectivida e às relações cromáticas, a jovem artista se vê forçada a imaginar, inventar e desenvolver seu sistema de expressão como autodidata. Dado que ela tenha escapado do condicionamento cultural que gera e transmite uma escola de arte, a pintora se deixa levar pela criação leve e pela liberdade que a cultura não acadêmica pode ceder. Seguindo sem saber os passos do pintor francês Jean Dubuffet (1901–1985), segundo o qual a ignorância “fornece asas”, Auxiliadora alça seu voo, manifestando uma inventividade febril. Ela faz da necessidade uma virtude […] (PEIRY, ano, p. 118)

Ainda que a arte da pintora seja classificada como inculta, fica evidente em sua obra a retratação profunda, interpretações de alto valor sobre sua vida e morte. Em suas telas, de maneira gentil e pouco modesta, demonstrava seu íntimo e de sua comunidade. Em 2015, Viola Davis se tornou a primeira mulher negra a receber o Emmy de melhor atriz, em seu discurso de agradecimento a mesma disse: “A única coisa que separa mulheres negras de qualquer outra pessoa é a oportunidade”. A Auxiliadora nunca foi ofertada a oportunidade de maneira natural, ela sabia disso, talvez por isso tenha criado seu próprio modo de se expor no mundo, com suas próprias regras, desprendida de padrões. Expunha livremente, sua essência era o cotidiano.

Humanos, árvores, flores, frutas, cores saturadas, texturas. Independentemente da estrutura material que usava para dispor seu pincel carregado de tinta, Maria Auxiliadora da Silva trabalhava com a repetição seriada: muitas vezes a pessoa que vê a obra, assim como provavelmente a própria artista, pode reparar em elementos comuns e complementares, as peças parecem se conectar. A história está sendo contada, e não se trata exclusivamente de uma história da própria autora, mas da história de um povo muitas vezes sem face que, ao longo da história, passou pela validação do olhar do outro sobre si. Auxiliadora contou em primeira pessoa sobre suas narrativas, nada sobre ela foi-lhe sequestrado. Em autorretratos, se traduziu artista, noiva, enferma de um câncer e até mesmo anjo, pintando também em outro plano astral.

Ateliê da artista e família, 1973
Velório da noiva, 1974
Autorretrato com anjos, 1972

Existir enquanto uma mulher negra é um ato que exige coragem

Ainda que em suas obras não sejam percebidas diretas relações com reivindicações políticas por direitos de pessoas negras, por exemplo, Auxiliadora carrega em suas obras visualidades únicas e, não por acaso, muitas dessas obras passavam inclusive por uma técnica singular com a mistura de tinta óleo, massa plástica e mechas do próprio cabelo. Lélia Gonzalez diz que:

Ser negra e mulher no Brasil, repetimos, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no nível mais alto de opressão. […] A mulher negra é vista pelo restante da sociedade a partir de dois tipos de qualificação “profissional”: doméstica e mulata. (2020, p. 58 e 59)

Maria Auxiliadora da Silva se fez livre para criar e mesmo que sentir medo diante do desafio de viver um câncer e morrer justamente em seu momento de ascensão seria algo mais que explicável, mas, pela sensação de serenidade que essa mineira passou diante de sua percepção de vida e morte, ouso concordar e dizer que Nina Simone (1933–2020) de fato estava correta ao dizer que “liberdade é não ter medo”.

Recomendo What Happened, Miss Simone? Direção: Liz Garbus. Documentário exibido pela Netflix (2015).

Em texto, Renata Aparecida Felinto dos Santos descreve a pintora como potente e de olhar sensível, assim também a vejo.

Auxiliadora: mulher realizadora, de pisar leve. É nesta cadência que se estrutura a presente escrita-leitura: pisando miudinho nessa terra fértil que é o conjunto de sua obra, produzida e envolvida em sua vida de fêmea e negra. Situamos essa escrita do não lugar entre a monografia e a prosa horizontal entre iguais, aproximando-a, portanto, do lugar único e inclassificável que ocupa Maria Auxiliadora nos estudos e registros das artes visuais brasileiras. (2018, p. 49)

Por fim, acredito que seja importante reforçar que é possível produzir conhecimentos profundos mesmo que sob a suposição de que a ausência de formação acadêmica somada a cor, classe social e gênero sejam estigmas que empreguem “deficiência” intelectual. A vida e arte de Maria Auxiliadora são a prova de que se é possível pensar outras possibilidades de futuro e presente que contemplem existir de maneira digna. A exigência (não tão) discreta por seu lugar no círculo artístico culminou, inclusive, em uma grande exposição individual no MASP em 1981. Em vida, viveu seus sonhos. Isso é não libertador.

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Leila Evelyn

Me disseram que essa era a mídia social do textão, por esse e outros motivos, aqui estou. — 26 anos, Relações Públicas, produtora e várias fita.