MÚSICA PRETA BRASILEIRA: HERANÇA BENDITA DO MOVIMENTO NEGRITUDE

Leila Evelyn
12 min readDec 6, 2022

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Estranho seria pensar a arte de maneira desassociada de nossa vida e construção coletiva enquanto sobreviventes desse verdadeiro apocalipse

Esse artigo busca compreender, a partir de perspectivas de autores diversos, e ilustrada com elementos não-convencionais (música, poesia e afins), como se deu a construção de lutas antirracistas no Brasil, dando uma pincelada sobre as relações escravagistas e saltando até a modernidade.

Vamos trocar uma ideia, colocar em paralelo, sem necessariamente preservar a linearidade dos fatos, priorizando elementos que exponham características que atravessam e reverberam até os dias de hoje no que agrupamentos pretos e pobres apresentam em expressões artísticas na cidade de São Paulo, sobretudo na musicalidade.

Texto adaptado, originalmente escrito como parte da disciplina Panorama dos movimentos sociais negros no Brasil, integrado no curso de pós graduação Cultura, Educação e Relações Étnico-Raciais (CELACC USP)

Introduçãozinha rápida

Como parte de uma família majoritariamente negra, cresci no distrito da Cidade Tiradentes, extremo leste de SP. Não era incomum ouvir por ali Ndee Naldinho estalando na caixa do meu vizinho Fernando. Nostálgica em pensar que lá pelas primeiras décadas dos anos 2000, tinha menos de 10 anos e obviamente não fazia ideia do que as letras queriam dizer.

Salvo o romantismo, esse tipo de contato com a realidade muda nossa perspectiva em relação ao mundo. Não à toa, conseguimos identificar com facilidade em determinados estilos musicais advindos das periferias, sobretudo no samba, funk e rap, uma visão pessimista e critica como resposta ao tempo e contexto em que estão inseridos.

Defendo que periferias devem ser sempre descritas no plural, pois cada território possui suas complexidades e características essenciais; mas aqui parto do pressuposto de que a música é o elo que tem a maior potencialidade de descrever de maneira mais generalista o que é comum a todas elas. Quase como que de maneira natural, a negritude está atrelada a produções culturais como forma de expressão e persistência pela sobrevivência, a fim de valorizar toda manifestação cultural afrodescendente.

O processo de valorização cultural negra se dá há muitos séculos no Brasil, considerando desde os primeiros tempos de escravização, onde se aglutinaram pelas condições espaciais e sociais. Longe de estigmas midiáticos que, por vezes, reforçam a imagem de que essas pessoas eram extremamente apáticas as violências, há estudos que demonstram que houve muita luta, formas através das quais essas pessoas se defenderam à brutalidade.

Minha teimosia é uma arma: ferramentas de sobrevivência versus dados absurdos

Foi essencial contar com a organização estratégica em grupos, que tinham como objetivos, para além da alforria, preservar suas crenças, retomar o direito ao menos ao mínimo de lazer, fazer voltar a funcionar valores e traços culturais africanos, obter recursos financeiros, entre outros. De acordo com o autor Clóvis Moura, foi uma estratégia assertiva diante do caos, ele os intitula como rede de grupos específicos.

Esse processo se perpetuou pós abolição, as organizações se reinventaram ao longo dos anos, se transformaram em associações, festas tradicionais e religiosas, candomblés, escolas de samba, companhias teatrais, centros políticos, imprensa engajada, entre outros.

Levando em consideração o recorte que nos cabe neste artigo, ainda hoje, em um processo constante de resistência e adaptabilidade. Percebemos em periferias da cidade de São Paulo, grupos diversos articulando mecanismos e operando “milagres” com poucos recursos, em nome de ideais ainda muito vívidos. Não só em nome da raiva, mas também nome do direito a dignidade em uma sociedade estruturalmente desigual.

Segundo o último Censo, 2010, a cidade de São Paulo tem 96 distritos, onde 57 destes estão em periferias. No documentário abaixo, “O crescimento das cidades e da periferização”, dirigido por Jorge Mansur e exibido pelo Canal Futura, especialistas em urbanização afirmam que a maioria das cidades no Brasil não permite a permanência de classes menos favorecidas em regiões supervalorizadas, a chamada “gentrificação” ou “periferização” que implica na especulação de imóveis e consequentemente no afastamento dos mais pobres por custo de moradia e bem-viver.

Com base no Censo anteriormente citada, o mais recente publicado, Camila D’Ottaviano e Suzana Pasterk escrevem sobre favelas no Brasil, apontam as dificuldades de acesso às moradias da população favelada. As autoras afirmam que, entre 2000 e 2010, a taxa de crescimento anual do parque domiciliar brasileiro foi de 0,57%, enquanto a dos domicílios favelados atingiu 6,93%. A região Sudeste passou de 13 mil, em 1980, para 1.3 milhões, em 30 anos.

Para que uma pessoa moradora tenha acesso a renomados centros de arte e cultura como o Museu de Arte de São Paulo (MASP), é possível que empregue cerca de 5h de seu dia entre ida e volta no transporte público.

Segundo o Mapa da Desigualdade 2021, a média de idade (em anos) com que as pessoas da população morreram de acordo com o local que residência por distrito segue extremamente desigual. Enquanto no Alto de Pinheiros as pessoas morrem em média aos 80 anos, na Cidade Tiradentes, morrem aos 58. Os dados isolados podem não dizer muito para nós, mas ao avaliar a proporção desigual também de Acesso ao transporte público de alta capacidade (trem, metrô e monotrilho) por distrito; Proporção de domicílios localizados em favelas; Taxa de mortalidade proporcional (%) por Covid-19 e, por fim, considerarmos a Proporção (%) de pessoas pretas e pardas por região, fica nítido que a qualidade de vida e acesso segue como direito garantido apenas para pessoas não-pobres, sobretudo brancas.

O Povo da Periferia, Ndee Naldinho — 2002

É preciso tomar cuidado para não espelhar o sudeste como parâmetro para todo Brasil, claro, mas é importante dizer que, apesar disso, o cenário infelizmente não é diferente em outros estados, visto que o país está entre os dez países mais desiguais do mundo. Recordista em concentração de renda, a pandemia do Corona Vírus escancarou ainda mais a necessidade de tomada de medidas em relação a populações abastadas.

Força bruta: apesar de todo descaso e abandono, há movimento

Voltando ao Mapa de Desigualdade 2021, a proporção de centros culturais, espaços e casas de cultura (municipais) pode ser descrita como insuficiente, especialmente nas regiões mais periféricas. Assim, para que as pessoas tenham acesso à cultura, há articulações em torno de diferentes linguagens artísticas e tecnológicas: danças, grafite, fotografia, vídeo, poesia etc. Um exemplo importante nesse sentido é a Cooperifa, fundada pelos poetas Sérgio Vaz e Marco Pezão, atua difundindo informações por meio de saraus, em entrevista à redação do veículo Brasil de fato, Sérgio afirma que:

A poesia foi tida como algo sem utilidade, mas a gente acha que a palavra tem utilidade. Esse povo que nunca teve acesso à cultura e ao lazer se descobriu pela poesia. Nesse trabalho de base, falando de livros, conseguimos dessacralizar a literatura e fizemos isso da mesma forma que nossos ancestrais, pela oralidade.

Sarau Cooperifa, novembro de 2022 (Via Instagram)

Todo recorte étnico se faz como fundamental nesse sentido, visto que ao refletirmos sobre o contexto histórico, onde a população negra se uniu por identidade racial enquanto atributo do signo que servia para organizar aqueles grupos, uma consciência por identificação. Afinal, a tonalidade de pele é uma característica determinante para gerar desigualdades e entraves para que indivíduos tenham maior ou menor dificuldade para viver plenamente a própria cidadania.

Recuperando as ideias de autores panafricanistas, o sociólogo inglês Paul Gilroy propõe uma releitura sobre a contracultura da modernidade, e da própria cidadania, rejeitando a separação ocidental de ética e estética, cultura e política. Isso porque, segundo ele, essa tradição de ensinamento da ética e política perdeu o direito à racionalidade visto que a escravidão se tornou interna à civilização, parte da estrutura que nos acompanha até os dias de hoje, e nesses processos se escancarou uma cumplicidade óbvia colonial revelando existir uma racionalidade na prática de terror racial.

Sem se dar conta ao certo de todas as consequências da escravização, os negros ocidentais usaram da memória preservada como recurso intelectual e seguiram lutando para manter a unidade entre ética e política — muitas vezes utilizando como recurso a própria espiritualidade.

Seu avanço do status de escravos para o status de cidadãos os levou a indagarem quais seriam as melhores formas possíveis de existência social e política. (GILROY, Paul. p. 99, 2012)

Atualmente, ainda sob a cobrança secular por direito a existência digna, artistas marginalizados seguem avançando utilizando como subterfugio a palavra como principal ferramenta em suas reinvindicações. Inspirados na Cooperifa, nascem movimentos semelhantes em toda cidade de São Paulo. Mas a palavra não se basta na poesia, transborda em execução de eventos, interpretações em formato de dança, teatro e, não de maneira obstante, na música cantada.

As mensagens presentes em rimas por vezes soam como protesto as condições escassas para viver a vida em plenitude e bem-viver. Como uma herança bendita do Movimento Negritude, o Brasil passa por uma virada em relação a seus desígnios a partir de frutos dessa mobilização, tal qual o Teatro Experimental do Negro (TEN), com Abdias do Nascimento, que foi militante da Frente Negra Brasileira, intelectual ligado às artes como instrumento que possibilitou ao sujeito projetar algo diferente do que estava posto para seu futuro.

Com a maior visibilidade da “questão étnica” no plano internacional e do movimento de afirmação racial no Brasil, negritude passou a ser um conceito dinâmico, o qual tem um caráter político, ideológico e cultural. […] Já na esfera cultural, negritude é a tendência de valorização de toda manifestação cultural de matriz africana. Portanto, negritude é um conceito multifacetado, que precisa ser compreendido a luz dos diversos contextos históricos. DOMINGUES, Petrônio (p. 1–2, 2005)

E continua

Quando o grupo surgiu, a negritude passou a ser a ideologia mais geral, que imprimiu um sentido para o pensamento e as ações dos ativistas. Para o TEN, mais do que um sistema de ideias, negritude era uma filosofia de vida, uma bandeira de luta de forte conteúdo emocional e mítico, capaz de mobilizar o negro brasileiro no combate ao racismo, redimi-lo do seu complexo de inferioridade e, por conseguinte, fornecer as bases teóricas e políticas da plena emancipação. […] Cumpre assinalar, todavia, que a contribuição sentimental e a predisposição para as artes não são traços específicos da “raça” negra no Brasil, mas resultado histórico de seu processo de adaptação sócio-cultural do país. DOMINGUES, Petrônio (p. 13–15, 2005)

O Movimento Negritude tem como origem a mesma da Frente Negra Brasileira e Movimento Negro no Brasil, até 1937. Se inicia como uma classe cultural e artística ao serem atravessados pelo racismo, afirmavam sua causa a partir de poesias, saraus, escritas de contos e outras expressões estéticas de valorização da cultura negra.

Os alquimistas estão chegando: como percebemos o legado dessas lutas na atualidade

De certo pelos desdobramentos políticos atrelados, uma série de discussões em torno de temas interseccionais que compõem os atravessamentos individuais passaram a ser pautados com prioridade no paralelo por autores como Abdias do Nascimento, Lélia Gonzales e Beatriz Nascimento, menina terra de sorriso gigante, que buscou definir, em Orí, quilombo como um espaço geográfico onde o homem tem a sensação do oceano.

Da esquerda para direita, Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento e Lélia Gonzales / Crédito: Divulgação

Em uma web-série intitulada “Guia de Revoltas Negras”, o coletivo Lentes Malungas convida especialistas para retratarem e refletirem o conceito de insurgência, não-submissão e resistência, a partir da interpretação da obra desses três intelectuais fundamentais para entender a formação histórica e sociopolítica do Brasil.

A onda negra que preserva seu caráter e essência diante das opressões, gera o medo da branquitude, que não se reconhece, não busca se reconhecer em seus privilégios e/ou só reconhece na medida em que é branqueada. Em sua obra, GILROY (2012), afirma que nesse sentido raça tensiona e forja a sociedade a partir da música, instrumento de escoamento de questões vivenciadas, grito diante das frustrações, elaboração de sentimentos diversos como ódio, tristeza, amor e alegria. A música expõe o oprimido ao mundo, oferece perspectiva:

Essa cultura musical fornece uma grande dose de coragem necessária para prosseguir vivendo no presente” (p.94)

O que hoje é amplamente difundido como Música Popular Brasileira — MPB, por vezes não contempla a pluralidade contida na complexidade da expressão de artistas negros, tidos como transgressores por fugir da norma não só lírica, mas também rítmica, seja incorporando atabaques no funk paulista ou banjo, instrumento resgatado pelo samba, incorporado anteriormente no folk norte-americano e pelos grupos de bluegrass, com grande importância no jazz. É o que Clóvis Moura chama de “Cultura de resistência”, a adaptação e poder inventivo percebida na população negra desde o sequestro transatlântico escravizador.

A potencialidade do que muitos estudiosos chamam de Música Preta Brasileira, em uma clara contraposição ao sentido da sigla MPB, está nitidamente presente no que escolho demarcar como um período pós Jorge Ben Jor, músico brasileiro que questiona e busca retratar pessoas negras preservando seu direito à humanidade desde os anos 60, tendo como marco, obras como Força Bruta (1970); Negro é Lindo (1971) e o clássico consagrado, A Tábua da Esmeralda (1974).

Mas eu não quero ser o primeiro / Nem ser o melhor do que ninguém / Eu só quero viver em paz / E ser tratado de igual para igual / Pois em troca do meu carinho e do meu amor / Eu quero ser compreendido e considerado / E se for possível também amado […] Pois eu já não sou o que foram os meus irmãos / Pois eu nasci de um ventre livre / Nasci de um ventre livre no século vinte / Eu tenho fé e o amor e a fé / No século vinte e um

(Charles Junior, Jorge Ben Jor — 1970)

Acredito que seja relevante considerar Jorge Ben Jor como um marco, pois ele não somente cria algo novo enquanto artista, ele recria possibilidades para que aqueles que vieram depois também pudessem exercer sua musicalidade como lhes fizesse sentido. Bem é afrofuturista, referencia o passado olhando para o futuro onde é possível ver o povo preto livre, vivo. Não há como não mencionar o grupo Racionais MC’s, e outros artistas que diretamente ou indiretamente foram impactados por sua sonoridade que mescla melismas, falsetes, guitarra, violão, percussão e baixo.

A exemplo disso, recentemente Artelheiro, vulgo de Elias Santos, lançou o álbum “A EPOPEIA DE CHARLES”, uma produção da gravadora e produtora independente Nebulosa Selo, lançada em novembro de 2022. Com bases que mesclam ritmos de Funk, Samba e Rap, Elias transfigura a linguagem e imprime em cada faixa a reivindicação de direito a sentimentos genuínos, incluindo à ternura. Em entrevista ao portal musical Monkey Buzz, por Thais Regina, sobre o disco retratar a história de um herói ou anti-herói, responde:

Herói, mano. Herói que eu sempre quis ter e nunca tive, inclusive. A construção do homem ideal na periferia, que não é um homem desconstruído, mas é um homem em descoberta de si próprio. Ele representa a minha trajetória também, de ser um mano que queria ter uma Ducati, uma XT. É a história do meu bonde. Ao mesmo tempo, conforme eu fui ficando mais velho, eu saquei a importância da política na minha vida. Então, eu ainda quero ser essa pessoa, mas com a consciência política, racial e social. E se eu tiver de XT, vai ser para trazer de volta o que tomaram de nós. Esse é o heroi da quebrada: o cara que entende o fundamento, a trajetória, o mundo. É quem tem o mundo na palma da mão e que consegue olhar por várias perspectivas e ir em busca da paz e da justiça. Esse disco é sobre paz, justiça e liberdade do começo ao final.

Preservando aqui o direito à metáfora, talvez essa seja a “magia” que Djavan cantou em 1975, no álbum A Voz e Violão, preservada em composições que reverberam autoamor em uma sociedade que minoriza e violenta.

Amor, eu tô partindo mas talvez eu não volte,

Eu me permiti ser fiel ao que tô sentindo

Se você quiser vim pode até ir no toque

Enxerguei lá na frente um horizonte lindo

Já meti na minha bag espadas de São Jorge,

botei na bagagem, camélias e aroeiras,

Com as carenagem, comigo ninguém pode

segura bem firme que os grau é subindo as ladeira

Quero fugir acelerando a multistrada

Por não gostar do teor dessa atmosfera

Não vou voltar de mãos vazias pra quebrada,

mas meu processo é lento, ninguém acelera

E a busca abstrata não espero que entendam,

o óbvio sempre me causou muito tédio

Eu nasci com uma fome de uns 500 anos

E pra essa doença não encontrei remédio

[…]

E eu vou ser delicado pra não ser frágil

insensibilidade é o que tem a ver com fraqueza

Não é sobre ser afogado é sobre ser ágil

Minha espiritualidade não esbarra na pobreza

(Epígrafe de Viagem, Artelheiro — 2022)

Por fim, ao perceber a linearidade histórica, não é difícil afirmar que há uma crescente positiva em relação a expressão artística presente nas relações raciais brasileiras. Apesar da pressão das elites para esmagar e suprimir, de fato, os mais abastados, nota-se um contrafluxo persistente que segue se reinventando mesmo em um cenário negativo. Ao pensar a cidade de São Paulo, levando em consideração o recorte devido neste artigo, a máquina pública acaba cedendo abrindo espaços em eventos pela Secretária de Cultura de São Paulo, a exemplo da Virada Cultural com programação descentralizada; e as instituições privadas, consequentemente, passam a ser cobradas para abrigar maior diversidade em propostas abertas ao público externo.

Símbolo Adrinkra: Sankofa

Há uma concepção na África Ocidental (Gana, Togo e Costa do Marfim) ilustrada pelo ideograma de um pássaro mítico olhando para trás com o corpo virado para frente, carregando em seu bico um ovo, o futuro, Sankofa. O conceito de Sankofa nasce de um provérbio tradicional entre os povos da língua Akan que diz: “se wo were fi na wosan kofa a yenki”, que pode ser traduzido por “não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu”. Vejo na atualidade a reclamação pelo que ficou esquecido após ser renunciado.

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Leila Evelyn

Me disseram que essa era a mídia social do textão, por esse e outros motivos, aqui estou. — 26 anos, Relações Públicas, produtora e várias fita.