O sinal da careca

Leila Evelyn
4 min readApr 27, 2020

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Eu sou uma pessoa que leva mais tempo digerindo situações de grande impacto. Alguns chamam isso de negação, eu chamo de cuidado. Me dou tempo para refletir sobre tudo. Bem, assim foi (e ainda é!) com meu pai. Levei muitos anos para entender, ou ao menos tentar, entender nossa relação. Minha mãe e irmã já tinham tomado essa atitude antes, mas foi só na quarentena que decidi raspar a cabeça pela primeira vez, e foi então que descobri um sinal de nascença na cabeça, antes encoberto pela cabeleira crespa, no mesmo lugar onde está a do meu pai.

Tenho sinais de nascença por todo corpo, pequenos e em formato de coração, mas esse, na cabeça, justamente esse que durante meus 24 anos me foi um segredo, me chamou muita atenção. Tenho o privilégio de estar segura em casa durante a pandemia do COVID-19, mas esse infelizmente não é o caso do meu pai. Ele é vigilante de um hospital e, apesar de ser parte do grupo de risco, está cumprindo seus plantões, 6 dias de trabalho por 1 de folga. E, por incrível que pareça, graças ao distanciamento físico nos aproximamos muito digitalmente.

Eu, o senhor meu pai e Laisa, minha irmã, lá pelos anos 2000 passeando pela Cidade Tiradentes.

Acredito que essa não seja uma novidade, a maioria de nós teve que se readaptar e tentar digitalizar relações a fim de diminuir o crescimento do vírus. O que me impressiona não são as mudanças, quer dizer, elas impressionam, mas não é sobre o que quero falar; eu quero falar é do sinal na careca. Quem é mais íntimo pode garantir: eu sempre dou significado pra tudo, não levo nada como mero acaso, portanto, esse não é somente um sinal genético, para mim é como um recado. Veja bem, resolvi raspar a cabeça para encarar os traços do meu rosto e descobri também, dentro de mim, sentimentos em relação ao meu pai.

Num domingo desses de quarentena recebi uma ligação inesperada, era seu João, meu pai. Acabei a curta chamada aos prantos, ouvi dele que sente minha falta, sentimento que o ocorreu enquanto preparava uma salada de maionese para o almoço. Pode parecer pouco surpreendente para você, caro leitor, mas meu pai é um homem negro e demonstrar sentimentos como esse não é de seu natural. Casado com minha mãe há uns 30 anos, sei que para ele, assim como para outros tantos, demonstração de afeto é comida no prato, nem que isso custe o endurecimento das palavras e ações a fim de aguentar a vida dura.

Meu pai chegando comigo no colo pós parto, em 1996.

Os vícios servem como muleta para todos nós, os mais vulneráveis se apoiam no que está ao alcance para lidar com o cotidiano. Não foi diferente com meu pai, que teve problemas com álcool por muitos anos e, hoje, ainda fuma. Também não foi diferente comigo, digo, por muitos anos o cabelo foi o maior adereço do meu rosto. A feminilidade não está para mulheres negras assim como para mulheres brancas. Mantê-lo alisado, trançado, hidratado e grande, foi uma maneira que encontrei para ainda ver beleza compensatória ao nariz largo, olhos pequenos e todos os outros aspectos de minha raça.

O plano era ficar careca em 2020, a quarentena me deu tempo para refletir (e digerir devagar, lembra?), estava adiando pela insegurança e, ao perceber a pinta na cabeça, tudo fez sentido: não poderia existir momento mais propício. Sinto falta da minha família, morar sozinha sempre foi meu sonho e agora, prestes a completar um ano na nova jornada, questionei a decisão que parecia tão precipitada tendo em vista o meu medo de ficar sozinha no primeiro grande problema a ser enfrentado. Cansada de buscar culpados, sinais mostram que devo ter coragem e pulso firme, com cuidado para não endurecer minhas palavras como outrora parecia ser o mais correto a se fazer.

Meus pais e Laisa, minha irmã, 1997.

Acredito que a fé é uma maneira de levar a vida sem esmorecer, é como tenho seguido e dado significados aos milhões de pensamentos que passam na cabeça. Em Poemas da Recordação e outros movimentos, Conceição Evaristo diz que é na Esperança que vive o homem:

[…]

com o suor de seu rosto,

com a água de seus olhos,

com a fluidez de sua alma,

cospe e cospe no solo

amolecendo a pedra bruta.

faz e sonha.

e no outro dia, no amanhã de muitos outros dias, a vida ressurge fértil,

úmida,

alimentada pelo seu hálito.

e que venham todas as secas,

o homem esperançoso

há de vencer.

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Leila Evelyn

Me disseram que essa era a mídia social do textão, por esse e outros motivos, aqui estou. — 26 anos, Relações Públicas, produtora e várias fita.